quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

2013 - O Ano da Montanha Russa

Mais um ano que chega ao fim!

Com a certeza de ter perdido a minha oportunidade para ir para o Congo e com o projecto do Seixal terminado por uma decisão palaciana - Da qual também tive responsabilidade. Tivesse ouvido os conselhos para terminar com determinadas situações mais cedo, e as coisas poderiam ter sido diferentes - pouco mais tinha que me prendesse a uma rutina que me estava lentamente a asfixiar.

Foi assim que comecei o ano de 2013 noutro país. Para fazer sabe-se lá o quê! Cheguei a Inglaterra, a um país que só tinha estado de passagem, do qual conhecia pouco e que desde a secundária pouco ou nada mais me tinha interessado. Como suporte… Um irmão, uma cunhada e três sobrinhos. Ah! E um maluco que se mandou de cabeça atrás do seu sonho.

Deixei atrás alguns bons amigos, pessoas de quem gosto sinceramente, colegas dos quais tenho muitas saudades e também, tristemente, algumas profundas desilusões familiares.

No entanto não esperava que me viesse a sentir numa montanha russa. Talvez seja esta a melhor analogia para este período da minha vida. Uma montanha russa….

Chegava de Portugal com um excelente currículo e alguns projectos de sucesso “no bolso”, aqui tudo isso valia zero. Tinha de começar tudo de novo. Levou algum tempo até recomeçar a trabalhar, mas quando fui contratado passei a receber o salario mais alto que tive até hoje na minha vida.

Quando começava a estabilizar economicamente, deparo-me com uma senhoria “doente” que me chegou a propor facilidades na renda a troco de favores de outro tipo, o que me fez procurar uma casa nova com caracter de urgência, tendo para isso de usar de muita imaginação e engenharia financeira para começar do absoluto zero. E se esta situação me deixava um pouco ansioso com o futuro, recebo a notícia que apenas depois de três meses passava a efectivo.

E o meu futebol? De pouco ou nada valia também tudo o que tinha feito até agora. O Futebol de Rua aqui é mais imagem que realidade. Poucas, muito poucas oportunidades tem a maioria das pessoas, que necessitam, de chegar aos benefícios deste desporto e desta iniciativa. Gira tudo a volta de uma pequena elite que se preocupa mais com a imagem que com a expansão do projecto. Um pouco a semelhança do que se passa com o Futebol de Rua no meu Distrito de Setúbal, que desde á dois anos não tem alcance real á população e se vê refém dos humores de uma só pessoa.

E se não via oportunidades neste meio, subitamente recebo o convite para começar um projecto de Futsal. O primeiro numa região de perto de 300.000 habitantes. Ah Claro! O meu primeiro desafio? Preparar e levar uma equipa a Portugal para fazer um tour de Futsal.

Assim tem sido este ano, uma autêntica montanha russa… Mas algo é permanente! Não há dia que não pense no Congo. Não há dia que não sinta um nó no estomago! Era lá que eu queria estar, era esse tipo de vida que escolhi para mim. 

No meio desta constante angustia, mais uma vez a montanha russa voltou a fazer das suas. Recebi um convite para rumar para outros destinos. Desta vez em Cebu numa ilha das Filipinas. Para fazer o quê? Trabalhar com famílias que vivem nas lixeiras e nos cemitérios da cidade…

Sempre fui fiel e cumpri os meus compromissos. Vou voltar a faze-lo!

Também não sei o que me trará 2014, mas sei sim que tenho de ser fiel ao que sinto e fazer aquilo a que me sinto chamado a fazer...

Neste ano também tive a oportunidade de sentir o apoio de algumas pessoas, que por actos, por acções ou ás vezes por simples palavras me fizeram sentir que estava sempre acompanhado e me ajudaram a suportar tantos altos e baixos.

Não entro em detalhes mas, Susana Pereira, Bruno Filipe, o mano Mário Codinha, Bruno Vicente, Luísa Ivone, Gonçalo Santos, Sílvia Relíquias são pessoas que me apoiaram nos momentos menos bons, e a quem vou ter sempre no coração.

Se isto não bastasse, houve algo que me alegrou este ano. Nos últimos meses foram aparecendo no Facebook, muitas das crianças com quem trabalhei no México. Hoje já são pais de família, profissionais e bons cidadãos que me dão um orgulho imenso.
Antes eram meninos de rua, hoje são polícias, motoristas, comerciantes, etc. E todos orgulhosos em mostrar os seus filhos ou falar das suas conquistas na vida. O que eles me dizem guardo só para mim, mas agora, e só agora no momento em que escrevo estas palavras, quase rebento de orgulho. Valeu a pena… cada minuto, cada segundo. Valeu a pena….

Basta de lamechices, daqui a um ano cá estarei para escrever mais um balanço! Quem sabe de onde, mas cá estarei….

Espero ter algum tempo para escrever algumas memórias. Algumas pessoas já me sugeriram que escrevesse acerca do Seixal Futsal (brevemente) e do meu trabalho em Portugal (veremos quando). Fica pois a promessa…


Bom Ano de 2014

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Mixed Feelings

Fiquei a saber à umas horas que faleceu uma senhora com quem trabalhei, ou melhor, que colaborou comigo nos primeiros tempos da instituição na Cidade do México.

Não sei se foi à pouco ou muito tempo, no entanto ao ficar a saber, que esta senhora já não está entre nós, não pude deixar de experimentar alguns sentimentos um pouco contraditórios.

Senti uma imediata tristeza, por pensar que uma mulher com a energia que demonstrava, a fé que apregoava e as obras que foi deixando, partiu. No entanto no momento em que o cérebro foi começando a ganhar terreno ao coração, fui-me lembrando de episódios da minha vida e da nossa convivência. Essa tristeza foi-se esvaindo até se transformar num sentimento perturbador, que estou para aqui a tentar articular...

Capaz de coisas fantásticas, sabia utilizar o facto de ser parte de uma das famílias mais abastadas do México para mobilizar vontades e capacidades para transformar uma pequena ideia numa grande obra. Foi também capaz de ameaçar deixar miúdos a dormir no chão ou sem colheres e garfos, porque achava que o seu orgulho era mais importante que o bem estar de 14 crianças.

Essas acções, que as julgue quem de direito. Em retrospectiva e de um modo muito particular e pessoal, foi a primeira pessoa a tornar-me profundamente desconfiado das grandes promessas de amizade e fidelidade. Tratou-me como filho, chamou-me de filho, até ao momento em que discordei das suas ideias e deixei de fazer o que ela ditava. Foram quase 3 anos de amizade, quase 3 anos de convivência e partilha de ideias e ideais que se esvaíram! De filho passei a "Judas".... e nunca mais a voltei a ver. Palavras vãs....

Depois do momento em que mandou os seus funcionários retirar as doações que tinha conseguido para a instituição (acho que já escrevi sobre este episódio anteriormente), só voltei a saber dela por duas ocasiões. Quando se envolveu com uma outra instituição para ajudar meninas da rua e hoje quando me disseram que tinha falecido. 

Não posso dizer que aprendi muito com ela. Conheci gente mais pura e congruente, mas infelizmente pouca gente encontrei que me tenha deixado tão reticente e desconfiado em acreditar em boas intenções e grandes sentimentos. Com ela aprendi a ter sempre 1000 cuidados e 1000 dúvidas. Mas tenho que reconhecer que no fundo ela era uma pessoa que queria fazer o bem.

Não consigo articular uma despedida ou um sentimento concreto em relação a esta senhora, sinto-me emocionalmente anestesiado! 

A língua inglesa tem uma expressão que me simplifica a descrição deste texto que acabei de escrever.... "Closure"

domingo, 9 de setembro de 2012

COMUNISMO E CRISTIANISMO

Nunca escondi que sou religioso e cristão. Acredito no ideal que Jesus Cristo representa e que se for vivido plenamente, representa uma sociedade ideal e infelizmente utópica.

Mas nestes dias, com o aniversário da morte da Madre Teresa, a Festa do Avante e com a minha "vivência" no Facebook, sou obrigado a reconhecer, e partilhar, que há mais congruência nas palavras/actos dos comunistas que nos pios cristãos.

No Avante ouvi a palavra Camarada vezes sem conta, invariavelmente a preocuparem-se com o meu bem estar, quer seja para me darem uma garrafa de água ou para saber se já comi e estou bem. No Facebook leio mensagens sem fim a proclamar leituras bíblicas de gente que passa a vida sentada a fazer isso mesmo, escrever citações biblicas!

No Avante vi "camaradas" a trabalhar até á exaustão para que pessoas pudessem ter experiências únicas (desporto, cultura, divertimento), sem receber um tostão e sem esperar nada em troca. No Facebook leio os convites que me mandam para assistir a concertos e cerimónias de pessoas que esperam atingir a salvação eterna, sentadas á frente do PC ou a cantar as bondades de Deus.

No Avante vi actos de civismo e respeito, no meio de dezenas de milhares de pessoas, sem olhar a idades, cores ou ideologias politicas. No Facebook, leio mais tweets e publicações de pessoas escolhidas á priori só por andarem a alabar publicamente o Senhor.

Não julgo porque não me compete, nem é a minha intenção ou função. Mas não compreendo nem me revejo num cristianismo digital ou em cristãos que vivem a vida em função da sua própria felicidade, sem fazer a coisa mais simples que Jesus pediu. Dar e dar-se aos outros, mesmo que para isso tenhamos que sacrificar algo que nos é querido.

Saio hoje da Festa do Avante o cristão do costume, mas um pouco mais "comunista", porque sempre fui admirador de congruência entre o que pregamos e o que fazemos. Por isso admiro a "minha" Madre Teresa, por isso admiro os meus amigos do Desporto do Avante, e por isso já me enjoa ler tanta treta pseudo cristã no Facebook....

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Do Futsal - Jogadores um reconhecimento

É uma mania que eu tenho, a de ano após ano fazer uma pequena avaliação sobre o que me aconteceu nos últimos 12 meses. Neste Dezembro, optei por ir novamente ao tema do desporto e mencionar algumas pessoas que marcaram este período. Começo por destacar alguns jogadores que foram “meus”, uns por mais tempo que outros, mas que de uma maneira ou de outra deixaram uma marca no tempo que passaram comigo.
Bruno Sequeira, um jovem jogador que me acompanhou este ano no mundial de Futebol de Rua. Eu já o conhecia de o treinar durante a ultima época, mas foi em Aveiro e França que ele mais brilhou e fez com que o admirasse como pessoa e como atleta. Como deve ser do conhecimento de alguns, a classificação de Portugal não foi aquela a que nos tínhamos habituado nos anos anteriores, um 2º e um 4º comparados com um 14º é uma diferença muito significativa, e como podem imaginar a moral e a motivação foram muito difíceis de gerir. E foi precisamente um jovem de 17 anos que conseguiu transmitir alegria e jovialidade para dentro do grupo. Quando já os treinadores pensavam no que fazer á vida, era sempre o Bruno que mantinha o grupo bem disposto e que em muitas ocasiões, com acções e palavras conseguiam despertar novamente a minha vontade de combater neste mundial e lembrar-me que estava lá pela minha pátria. O número 10 desta selecção teria sido o factor de sucesso nos outros anos, e sem duvida teríamos sido campeões . O seu pequeno tamanho não transmite a grandeza do que é capaz de fazer, pelo que sempre terá a minha gratidão e poderá contar comigo para o que quiser e necessitar.
Rui Andrade, o jogador que mais tempo teve comigo nos dois projectos em que participei. Também esteve comigo no Brasil, no Futebol de Rua, onde mais uma vez mostrou a sua personalidade boa e leal. Uso a palavra boa, porque a palavra em si, já descreve a essência do seu carácter. Um bom amigo com um grande coração, o que já me levou a dizer que ele poderia ser um excelente missionário. Pensa sempre nos outros antes que nele próprio e quando chegar á idade em que não se preocupar com a imagem que quer transmitir aos outros, e quiser seguir unicamente os seus instintos, vai com toda a certeza fazer muito bem a muita gente. Acho mesmo que de todos os jovens que conheci, é o Rui aquele que melhor encarna o que eu gostaria de poder dar como exemplo. Poucas palavras e muitas acções, é a sua principal característica.
Tiago Carriço, o jovem que mais mudou a ideia pré concebida que tinha dele. Um poço de força, energia e amor á camisola. Nele caía sempre a minha ultima esperança de mudar um jogo ou de puxar pela equipa quando as coisas não estavam bem. A juntar á sua grande força interior, também é dono de uma enorme humildade o que potencia a sua vontade de querer sempre fazer mais e melhor. Quem não se lembra da sua exibição contra a Zona Sul na primeira volta, absolutamente fantástica, com um génio e uma força sobre-humana, carregou com a equipa e arrancou, das mãos dos jogadores da Baixa da Banheira, uma vitória quase certa. De certeza que quando no futuro tiver a orientar jogadores noutros sítios do globo, vou dar como exemplo o caso de um jogador que tinha um (des)penteado maluco e que era capaz de acordar uma equipa inteira.
Tiago Baião, é um daqueles que nasceu para jogar á bola e que por adorar o que faz, é um exemplo do que um atleta deve ser. Sempre pontual, sempre dedicado e sempre preocupado foi um ponto de referência para todos os colegas. Quando alguns davam desculpas por algum atraso, eu podia falar no Baião e dizer, que o que vivia mais longe nunca se atrasava, pelo que eu sentia que podia sempre exigir mais pontualidade. Uma das coisas mais importantes num jogador e num grupo é poder contar com alegria de pertença, ou seja, gostar de ser parte da equipa, gostar dos colegas, adorar jogar e transmitir esse sentimento aos colegas. Ora o sorriso Colgate do Baião foi sempre um barómetro da disposição de todos e ao mesmo tempo um catalisador da sincera boa disposição do grupo.
Carlos “Quaresma” Rodrigues, que dizer deste jovem? Que é um grande jogador, um grande colega e um bom amigo? Parece pouco... Foi um pilar de fortaleza na equipa, fosse em que competição fosse, e se falei do Futebol de Rua, posso sinceramente dizer que se o tivesse na selecção de Paris, com toda a certeza as coisas teriam sido diferentes. Sempre “cool” e sereno, conseguia transmitir essa sensação a todos, especialmente nos momentos em que o grupo se mostrava mais instável ou menos confiante. A juntar a tudo isto tem um sentido de humor impagável, conseguindo pôr sempre toda a gente com um sorriso nos lábios, o que num grupo que passa mais tempo junto que algumas famílias, reveste-se de uma importância fulcral. Onde quer que esteja e em qualquer equipa que jogue, vai ser sempre um elemento essencial ao bom funcionamento dentro e fora das quatro linhas.
Jorge Fino, é um daqueles raros jovens (infelizmente muito raros), que consegue juntar inteligência á boa capacidade de expressão. Senhor de poucos sorrisos, é um daqueles que consegue sobrepor-se ás situações com uma força interior invejável. Vou sempre falar da vez em que lhe pedi para virar um resultado, para entrar em campo e conseguir abanar o jogo e a sua equipa. Assim foi.... minutos depois a bola já estava dentro da baliza e conseguimos em dois minutos (os ultimos) sair de um 3-1 para um 3-3. Por ter conhecimento das suas capacidades, é o unico a quem deixo uma mensagem, ou melhor um conselho: Duvida, questiona e analisa tudo o que te dizem ou o que querem que acredites. Tens essa capacidade, por isso se te dizem que não prestas, duvida. Se te dizem que és muito bom, questiona. Pode ser chato ou dificil, mas olha, é a cruz de quem tem uma capacidade intelectual acima da média, mas isso também vai acabar por te dar o equilibrio de uma vida com sucesso.
Estes foram os jogadores que mais marcaram o ano de 2011 e a para com quem eu tenho uma divida de gratitude. Sabem, porque me conhecem, que poderão sempre contar comigo, do mesmo modo que eu sempre pude contar com eles.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

ABRAÇOS MALCHEIROSOS MAS SINCEROS

Um dos miudos que lembro com mais carinho chamava-se Pitufo, ou pelo menos era assim que o chamavam. O nome verdadeiro, nunca o soube, mas a alcunha nada tinha a ver com ele. Pitufos no México eram os Estrunfes, uns bonecos azuis que viviam numa aldeia com cogumelos como casas.

O nosso Pitufo era castanho, magro e alto. Castanho da sujidade e magro da fome, mas era um tipo impecável. Ele vivia  com o primeiro grupo com quem trabalhei na rua na Cidade do México, na zona de Indios Verdes, e não sei bem porquê lá simpatizou comigo e ficámos grandes amigos.

Chamava-me Pariente, que literalmente significa "Familia" e tinha o hábito de vir ter comigo dar-me um grande abraço cada vez que eu chegava ao pé deles. É dificil de explicar o fedor que aquele miudo tinha. Muitos dias sem banho, a viver nas caixas de esgoto, a fumar erva e a inalar diluente. Não há descrição possivel.... mas lá vinha ele, com um grande sorriso a gritar pariente, a abraçar-me e a perpetuar o braço sobre os meus ombros, o que acentuava o sofrimento do meu sentido olfactivo.

Muitas vezes fiquei a ouvi-lo contar os problemas que tinha com a Brenda, a sua namorada de longa data, que por acaso era feia como só ela. Os seus dentes pareciam o resultado de um choque de comboios, mas de algum modo eles amavam-se perdidamente e tinham uma relação quase matrimonial.

O mais fantástico acerca do Pitufo é que nunca me pediu nada. Nunca me pediu dinheiro, comida ou qualquer outra coisa material. Era um miudo simples, sem preconceitos e bastante afectuoso. 

Um dia perguntei-lhe qual era o sonho dele. Ele disse-me muito simplesmente que era poder entrar no restaurante em frente á boca de esgoto onde ele dormia, sentar-se e comer....

Um sonho simples de um miudo simples.

Quando comecei a dirigir a instituição estive algum tempo sem ir a Indios Verdes e quando voltei soube que a policia tinha feito uma batida na zona e os miudos tinham fugido dali. Nunca mais soube nada do Pitufo nem da Brenda, mas ele é uma daquelas pessoas que sinto muitas saudades, pelo seu carinho e pela sinceridade daquela amizade.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

NATAL ESPECIAL

Alguns dias após os acontecimentos do meu ultimo post, mais precisamente no dia 23 de Dezembro de 1994, recebi um telefonema da Agencia 57 do Ministério Publico, especializada em menores. 

Como de costume era a voz da Rosario, a assistente social, que me disse "Hola Carlitos, como te va?".... pronto ai vinha coisa, era um pedido de certeza. Mas desta vez nem pensar, tinha só 14 camas, 14 pratos, 14 copos, enfim... 14 de tudo, graças á caridade natalicia da Sra. Maria.

"Quiero que me ayudes con unos ninõs..... eles foram descobertos numa casa de um homem que os recolhia e os mandava mendigar" (Um estilo de Fagin do Oliver Twist) 

A historia destes miudos não era incomum. 3 deles tinham fugido de casa para ir experimentar as emoções da capital. Vinham do estado de Michoacan e francamente não tinham nada de meninos de rua. Os outros quatro eram miudos que tinham saido de casa, provavelmente por maltrato ou falta de condições e que pensavam encontrar na casa do tal homem um lar mais aceitável.

A policia soube da situação, fez um raide e retirou as crianças dessa casa. Até que os conseguissem mandar de volta para as suas familias ou encontrar uma solução mais permanente, teriam que realizar os trâmites legais necessários. Isso levava tempo e o Natal estava á porta....

Ora a Rosário já tinha tentado enviar os miudos para varias instituições, mas estas estavam cheias, sem espaço, etc etc etc. O costume! Por isso e em ultima hipotese estava a ligar á unica casa que nunca recusava ninguém. Mas agora era verdadeiramente impossivel, eu simplesmente não tinha condições.  Ela alegou todos os motivos possiveis e imaginários, e eu todas as desculpas possiveis e imaginárias, até que fiz finca pé e disse que não tinha camas, lençois nem cobertores.

A filha da mãe da Rosário não desarmou. Disse com uma lata de primeira: "Já falei com o estabelecimento prisional e eles dispensam 7 catres, 7 lençois e 14 cobertores. Quando te levar os miudos, levo-te o material" e claro fechou com chave de ouro "As crianças não vão passar o Natal numa agência de policia? Pois não?"

Os miudos chegaram ao fim da tarde, juntamente com uns guardas prisionais que traziam numa carrinha os catres, os lençois e os cobertores que diziam em letras vermelhas "Reclusorio Sur". Nessa noite tivemos que jantar em dois grupos,  porque entre cada um tivemos que lavar pratos, copos e talheres. Só tinhamos material para 14 e não para 21. Esse era o nosso numero.... 21. Tinhamos crescido 50% em poucas horas.

Na manhã seguinte, muito cedo, andava eu pela casa a ver os miudos a dormir na sala, no meu escritório e até na capelinha e a fazer contas á vida, do que teria de fazer para a ceia de Natal esticar para mais 7 putos, que como seria de esperar comem que nem alarvos. Mas lembro-me de esta ser uma imagem reconfortante, vê-los a dormir tranquilamente. Eles verdadeiramente sentiam-se seguros.

Por volta das 8h30/9h00 a campainha tocou, e eu fui á porta ver quem estava a tocar tão cedo no dia 24 de Dezembro. Era uma senhora cuja cara nem me lembro. Perguntou-me se ali era o Lar de Crianças, ao que respondi que sim. Ela disse-me que trazia algumas coisas para nós e se podia descarregar. Expliquei que os miudos estavam ainda a dormir, mas que eu levaria as coisas para dentro.

Ela abriu  o porta bagagens e começou a tirar (do que me lembro) três perus, caixas de doces, batata doce, duas caixas de louça de porcelana, coca-colas, bolos de frutas e uma enorme quantidade de brinquedos e roupa. Tudo novinho em folha. Dito isto agradeceu a oportunidade de poder ajudar e foi-se embora. Eu não queria acreditar! Eu nem tinha tido tempo de pedir nada a ninguém. E de repente ali estava tudo o que precisávamos e ainda mais.

Não me quero alongar. Mas nessa noite a ceia de Natal foi recheada de tudo o que era bom, comeram que nem alarvos, estrearam roupa, tiveram brinquedos novos e muito importante, estivemos todos juntos na mesa a comer em pratos de porcelana.

Até hoje só tenho pena de nunca ter perguntado o nome da senhora, nem a ter convidado a visitar a casa. Pois nunca mais a vi nem soube nada dela, quem era nem de onde tinha vindo. Mas de certeza que sei quem a mandou...

terça-feira, 16 de novembro de 2010

FALSA CARIDADE

Á pouco uma conversa que tive no Facebook, fez-me lembrar de algumas situações que relaciono com o titulo deste post.


Em 1997, na Cidade do México, eu juntamente com alguns empresários e pessoas dedicadas, abrimos a Casa San Francisco, que recolhia naquela altura 14 miudos entre os 8 e os 16 anos. Todos os que puderam colaborar, ajudaram com doações de todo o tipo, pois ao fim e ao cabo uma casa nova precisa de tudo.

Após a abertura com toda a pompa, e passada a euforia das inaugurações, não tardaram os primeiros problemas.
No grupo de doadores e voluntarios, estava uma senhora, filha do fundador de um grupo económico gigantesco, e que é actualmente lider na sua área em practicamente todo o continente americano. Essa senhora tinha na altura 60 e poucos anos e descendente de uma familia espanhola conservadora tinha ideias muito próprias do que seria uma instituição.

Pessoalmente, sempre achei que já era dificil para um jovem estar num lar e longe de uma familia real, pelo que sempre quis que a instituição não tivesse placas na porta ou que a carrinha não tivesse logotipo, por exemplo. No entanto um dos primeiros grandes desacordos foi o facto da tal senhora (vamos chama-la de Maria), ter comprado para todos as crianças e jovens uns fatos de treino com o nome da instituição estampado nas costas e o logotipo no peito. E a intenção de os levar ao supermercado ás compras assim vestidos, ainda mais perto da residência da D. Maria, pareceu-me uma coisa completamente absurda por estar a expor e a tornar-los ainda mais diferentes do que, infelizmente, já eram.



A partir dai as coisas foram piorando. Não aceitei uniformes, não aceitei linhas desenhadas no chão para marcar o sitio por onde podiam andar, não aceitei horas de silêncio absoluto. Enfim, não é dificil perceber que a ruptura deu-se e a D. Maria acabou por ameaçar deixar de ser parte da instituição, e que nem colocaria mais dinheiro na casa se não se fizesse o que ela queria. Como sempre fui muito mau para aceitar ultimatos, e não estava sozinho nesta maneira de pensar, a negociação acabou e a senhora eventualmente deixou de apoiar a obra.

Ainda assim, isso não foi o mais dramático. Alguns dias depois fomos visitados por uma prima da dita senhora que nos disse que era intenção da D. Maria, recolher todo e qualquer objecto que ela tivesse comprado ou doado. É verdade!! E foi assim que mais tarde, no dia 14 de Dezembro de 1997, em vesperas de Natal, que a muito caridosa e religiosa senhora recolheu tudo o que tinha doado, segundo uma lista que cuidadosamente tinha preparado.

Levou camas, colchões, mantas, pratos, copos, lâmpadas, fatos de treino, até as panelas da cozinha foram. Penso que pouco se preocupou onde as crianças iam dormir, comer ou com que se iam tapar. O importante era que o seu orgulho e a sua vontade tinham de vencer.

O mais bonito foi que os seus empregados recolheram as coisas no pátio, porque dentro da casa tudo já tinha sido substituido. É que quando se soube o que a senhora se preparava para fazer, uma onda de solidariedade de muitas pessoas fez-nos chegar até áquela casa, camas novas, mantas novas, fogão novo, frigorifico novo e muitas outras coisas que no inicio nem tinhamos.

Quanto á senhora deverá ter ficado feliz com a sua vingança e deve ter passado mais algum tempo na igreja a pensar-se santa, pura e casta. Já nós passamos um Natal muito especial, que amanhã vos contarei...
Mas sim. Falar é fácil! Agora ser honesto é um pouco mais dificil...